domingo, 20 de julho de 2008
'Ó paí, ó' vira série de TV e mostra Pelourinho contemporâneo
Fazia frio e uma chuva fina e chata insistia em cair. Era madrugada e o relógio marcava quatro horas da manhã. Àquela altura, a maior parte das pessoas que mais cedo lotava as ruas já tinha ido embora. Se os músicos do Olodum e suas tranças afro não estivessem por perto e, principalmente, se as placas não indicassem que ali era o Pelourinho, ninguém iria acreditar que estávamos no coração da Bahia. Mas era Salvador, sim. E a prova definitiva surgiu quando aquela natureza genuinamente baiana se materializou diante de todos: num caminhão-palco cenográfico, um Lázaro Ramos animadíssimo começou a cantar e a rebolar ao som do axé "O que é que essa nêga quer", de Luiz Caldas, tocado às alturas nas caixas de som.
Era a gravação da última cena de "Virado do avesso", o último dos seis episódios da série "Ó paí, ó", que deverá estrear entre o final de agosto e o início de setembro na TV Globo. Durante quase dez horas, a Revista da TV acompanhou os bastidores das filmagens, uma co-produção entre a emissora e a Dueto Filmes.
"Ó paí, ó" é, originalmente, uma peça do Bando de Teatro Olodum e seu título, carregado de sotaque, vem da expressão "olhe para isso, olhe!". Em 2007, a obra virou filme nas mãos de Monique Gardenberg. E, agora na TV, é a mesma Monique quem também assina a direção geral da nova adaptação. Com texto de Guel Arraes e Jorge Furtado - e colaborações da própria Monique, do diretor Mauro Lima e dos integrantes do Bando - a trama traz de volta o dia-a-dia de personagens que povoam um malandro, bem-humorado e colorido Pelourinho, sem abrir mão de críticas sociais. Com exceção de Lázaro Ramos (que interpreta o protagonista Roque, aspirante a cantor), Matheus Nachtergaele (na pele do vilão Queixão) e Stênio Garcia (o comerciante Seu Jerônimo) - e de participações especiais - o elenco da série é formado quase na totalidade por rostos desconhecidos do grande público. A maioria faz parte do Bando de Teatro Olodum, assim como no filme.
- A série tem um sabor novo e a TV carece disso. Querendo ou não, como já fizemos muita dramaturgia, acabamos repetindo a mesma fórmula. "Ó paí, ó" não corresponde a cartilha nenhuma na maneira de contar uma história na TV. E isso é uma coisa que faz bem ao telespectador - explica Lázaro, ao revelar o que ele acredita ser o grande diferencial da série: - O elenco é desconhecido, o linguajar é diferente e é uma obra que veio da vida real. Quando você tem um mercado conquistado, ousar é um grande risco. Mas eu aposto que o novo não é um risco, mas um chamariz.
Vão se revezar na direção dos episódios, filmados em película, Monique, Mauro Lima, Olívia Guimarães e Carolina Jabor, que assina "Virado do avesso". Para Carolina, "Ó paí, ó" permite que uma grande parcela dos telespectadores se reconheça na TV:
- O negócio é o equilíbrio na televisão. Caso contrário, você fica num universo muito elitista. O movimento de trazer a periferia para a TV é fundamental, até porque é a periferia que vê televisão. A pessoa poder se identificar com o que está vendo, o que é muito legal.
Para Matheus Nachtergaele, a série mostra tipos baianos não estereotipados e contemporâneos. Seu personagem, o tatuado Queixão, é, em suas palavras, "um maluco beleza do mal, vaidoso, lesado e perigoso":
- A gente costuma ver a Bahia principalmente através de adaptações de Jorge Amado. São arquétipos mais antigos da baianidade. Eles permanecem, mas já estão revestidos pelo contemporâneo. Em "Ó paí, ó", a gente vai rever esses personagens, mas em novas roupagens. A força desse trabalho está no fato de os tipos, ou quase todos, terem sido criados pelo Bando Olodum. Isso traz muita autenticidade.
O personagem de Matheus é outro, mas veio cumprir o mesmo papel de antagonista que Boca teve na versão para o cinema. Boca foi vivido no filme por Wagner Moura, que não pôde participar da série por estar encenando "Hamlet" no teatro.
- Fiquei supertranqüilo quando me disseram que era outro personagem, porque Wagner é insubstituível - diz Matheus, que a cada quatro dias tem que refazer, durante mais de seis horas, as tatuagens que fazem parte do visual do amalucado Queixão, que, no final, vai se converter e virar evangélico.
Lázaro Ramos canta na série
Se Matheus Nachtergaele teve que se submeter a horas de caracterização para dar vida ao Queixão em "Ó paí, ó", Lázaro Ramos precisou investir em aulas de canto. Como o sonho de seu personagem é se transformar em um cantor de sucesso, durante a série o ator vai protagonizar 12 musicais. Ao todo, ele gravou em estúdio 17 canções, que vão de "Sonho desfeito", de autoria de Tom Jobim, Armando Cavalcante e Paulo Soledade, a "Eu vou tirar você desse lugar", do ícone do brega-romântico Odair José.
- Eu não canto, Roque canta. O personagem tem uma voz diferente da minha, mais aguda. E a parte mais difícil é essa. É conseguir equilibrar a minha voz, cantar o minimamente afinado e fazer a voz do personagem. Fiz algumas aulas e contei com a grande vantagem de não precisar cantar exatamente como um cantor - diz Lázaro, que passou boa parte da gravação no Pelourinho (interrompida várias vezes em função da chuva) cantando, às vezes sozinho no palco, empolgadíssimo e totalmente encarnado em Roque.
A diretora geral de "Ó paí, ó", Monique Gardenberg, responsável também pela trilha sonora da série, explica que a musicalidade em "Ó paí, ó" é uma conseqüência óbvia da influência do Olodum e da própria Bahia. E revela:
- Lázaro está cantando cada vez melhor. Ele é muito aplicado e esforçado. Acho que ele, assim como Roque, sonha um dia em ser cantor!
Além de aprender a cantar, Lázaro também vai aparecer com um visual bem diferente do seu último papel na TV, o heróico Evilásio de "Duas caras", novela de Aguinaldo Silva. Os cabelos estão maiores, graças a um aplique.
- O cabelo é o mesmo do filme. No último mês da novela eu já estava disfarçando. O Evilásio já não cortava o cabelo...- brinca Lázaro, à vontade dentro de uma camisa dourada, nada discreta, que deixava à mostra o peito nu coberto de colares.
Os figurinos, assinados por Cao Albuquerque (responsável também pelo visual dos personagens de "A grande família") e Bettine Silveira, são um capítulo à parte. Roupas garimpadas em brechós, arquivos pessoais e lojas, ajudaram a compor os tipos singulares que circulam em "Ó paí, ó".
- Sou baiano, cresci na Bahia e conheço bem o lado pobre da cidade.Todas as referências marginais que apareceram no filme também vão ser apresentadas na série - conta Cao.
O que se pôde ver, durante as filmagens, foi muita cor, muito brilho e pouco pano. A personagem Dandara (interpretada pela novata Aline Nepomuceno), por exemplo, é garota de programa. Durante os ensaios, a atriz, que faz par romântico com Lázaro na série, tremia de frio dentro dos dois pedaços de pano que cobriam seu corpo. Já o ator Lyu Arison, na pele do travesti Yolanda, usou e abusou de minissaias de lantejoulas, tops espalhafatosos e sandálias de salto agulha que desafiavam as ladeiras do centro histórico de Salvador. Num contraponto, Tânia Toko, intérprete da lésbica Neuzão, circulava confortavelmente com um par de chuteiras.
Os cenários de "Ó paí, ó", por sua vez, privilegiaram construções locais adaptadas e cenas externas, gravadas nas ruas da capital baiana. Tudo para das mais autenticidade à trama.
- Esta série sempre teve que ser feita na Bahia. Não daria para ser uma coisa reproduzida em algum outro lugar. "Ó paí, ó" tem uma coisa humana, um valor real que é fundamental para que ela aconteça. O que vemos é um universo pop, curioso, cheio de referências e colorido. Tem uma vida real - defende Carolina Jabor, diretora do episódio "Virado do avesso".
Tanto capricho pode ser resultado de o fato de "Ó paí, ó" ser uma obra fechada e curta. Bem-humorado, Lázaro, então, tentou definir a diferença entre fazer uma novela, que dura nove meses, e uma atração com apenas seis episódios:
- É que nem sexo. Tem dia que o rapidinho é bom. Em outros, quando é mais demorado, é que é bom. E tem dias que surpresa é bom e dias em que conhecer a pessoa é melhor. É sempre um prazer. Só que diferente.
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