Quando soube que a Fox ia produzir Contos do Edgar,
uma série de TV baseada nos contos de Edgar Allan Poe, fiquei muito
feliz e ao mesmo tempo bastante apreensiva. Essa apreensão não se deve
só ao fato de ser fã da obra de Poe, mas pela importância da obra deste
autor para a literatura universal. Poe é considerado por muitos uma
espécie de avô dos contos e romances de suspense, seus poemas e contos
cercados de simbolismos obscuros e cheios de reflexões metafisicas têm
como característica principal o terror psicológico que é construído com
base nas ações delirantes de seus personagens.
A obra deste escritor é considerada
densa e acreditem, dão muuuuito pano para manga em uma aula de
literatura. Por me considerar uma reles mortal que não se atreve nem por
um segundo entrar nos méritos citados acima por medo de que um raio
caia sobre a sua cabeça, prefiro comentar sobre os Contos do Edgar
mesmo. Confesso que mesmo não sendo uma grande fã dos seriados e
produções nacionais essa série me pegou de jeito. Sob a batuta do
diretor Pedro Morelli, o ator Marcus de Andrade vive o paulista Edgar,
uma espécie de versão tupiniquim de Poe. Na série nosso Edgar tupiniquim
passa pelos mesmos perrengues que o autor real passava em vida, só que
de forma adaptada a nossa realidade nacional, claro.
Como toda desgraça na vida de nosso
Edgar brasileiro é pouca, a criatura arrumou como “bico” um trabalho na
agencia de dedetização de seu “melhor amigo” Fortunato, a DDT Nunca Mais
(qualquer semelhança entre esse carinha e o personagem que termina
emparedado no conto O Barril de Amontillado PODE não ser mera
coincidência … muhaahahahaha) e é graças a esse trabalho “maravilhoso”
que nosso Edgar acaba se deparando com as mais bizarras histórias
envolvendo a alma humana.
O primeiro deles é o caso de Berenice,
uma cantora de tecnobrega que possui o sonho de fazer sucesso Brasil
afora. Devo admitir que ela até poderia realizar esse sonho se não fosse
um pequeno probleminha odontológico que digamos condicionava nossa
Berenice ao apelido de “Berê bitoca”. Sim nossa Berê era uma pessoa
desprovia de um sorriso saudável, para dizer o mínimo.
Decidida a dar um tapa no visual e um up
na carreira, Berê decide procurar um dentista e com ajuda de seu primo
Cicero, ou Cisso para os íntimos. O problema é que o orçamento fica um
tanto pesado para nossa heroína e é aí que Cisso entra na parada e diz
que vai bancar a operação toda trazendo assim a felicidade e o sorriso
para a vida de Berê. Para fazer tal milagre, Cicero decide roubar dos
ricos, ou melhor, dos mortos para dar aos vivos. Ele é tão fissurado na
prima que acaba arrombando o tumulo de um defunto chamado Egeu L.
Gonçalves para pegar seus pertences e revender (qualquer semelhança com
narrador/personagem desse conto no original NÃO é mera coincidência e
sim, ponto para a galera que adaptou o enredo deixando esse “brinde” no
meio do caminho).
O que poderia ser o inicio de uma linda
história de amor acaba virando um verdadeiro pesadelo devido ao fato de
Cicero não possuir um parafuso em sua cachola. O cara é meio que
fissurado por dentes, ele têm alucinações com dentes por todo o lugar e é
aí que nosso Edgar tupiniquim entra na história. Nosso dedetizador vai
até o bar onde Berê costuma se apresentar para conter – se é que é
possível num lugar daqueles – uma infestação de ratos e acaba conhecendo
nosso Cícero que trabalha ajeitando a fiação do local.
Cícero cada vez mais obcecado por dentes
e em especial pelas próteses de Berê decide partir para cima da morena,
pegando ela de jeito nos fundinhos do bar e é justamente no meio do
rala e rola que nossa heroína sente as primeiras pontadas de uma dor de
dente que acredite, será de morte.
Até ai , confesso a vocês que ainda não
tinha enxergado nada de relevante em relação e essência do terror que é
descrito nas obras originais de Edgar, e o porque de eu afirmar isso?
Sério gente, o fato do rapaz enxergar dentes ou arrombar uma tumba, não
me deixou lá muito impressionada. Uma das coisas que eu sempre gostei ao
ler as obras de Edgar Allan Poe é que elas tem o poder de me fazer
pensar dias e dias a fio sobre uma situação bizarra e dedicar um tempo
enorme para entender como funciona a cabeça de seus personagens. O fato é
que nesse primeiro episódio, eu percebi uma preocupação enorme em
apresentar os fatos e um certo descaso com a atmosfera de terror
psicológico que é uma das características principais da escrita de Poe. O
que torna este homem tão importante para a literatura universal é
justamente a capacidade de nos assustar por meio dos devaneios da mente e
não simplesmente em mostrar algo bizarro ou horrendo.
Devo admitir que essa atmosfera de
thriller de suspense, eu só senti no final quando nosso desconsolado
Cícero, inconformado com a morte de Berê, por consequência de uma
suposta infecção, acaba tomando a decisão de fazer uma pequena
“visitinha” no túmulo da amada. Essa, devo admitir, foi a parte que
melhor se encaixou, na atmosfera psicológica de Edgar Allan Poe, pois
Cícero entorpecido e tomado pelo delírio e pelo álcool, acaba
por fazer a maior loucura de sua vida e ao acordar no beco da boate,
sem ter a certeza se o que viveu na noite passada fora apenas imaginação
ou a mais pura realidade. Esse é o tipo de terror que encontramos nas
histórias de Poe. A cena em que ele caminha em direção a caixinha e o
flashback passando na cabeça dele, culminando com a comprovação de que
realmente havia arrombado e arrancado uma por uma, as próteses de sua
amada Berê (que na realidade sofria de catalepsia). Isso tudo, claro,
com o pequeno detalhe de que ela já se encontrava consciente foi a ápice
do episódio e com certeza um final bastante digno por ter se mantido
bastante fiel ao conto original. Porém, o episódio não acabou por ai,
foi realmente necessário que nosso Edgar tupiniquim reaparecesse e
terminasse a conversa com seu sócio e amigo? Creio que sim, pois já que a
série terá ele como fio condutor e como narrador oficial das histórias,
é justo que seja ele quem coloque o ponto final na história, isso sem
falar que o mistério e o suspense criado em torno de sua relação com
Fortunato e que espera-se que seja desenvolvido ao longo
dos próximos episódios e de preferência de um modo bem sinistro.
Aliás, SINISTRO É POUCO para os contos
de Edgar. O que chama a atenção nesse episódio piloto e o que me fez
querer continuar acompanhando os próximos episódios foi a maneira
inteligente que a produção encontrou para adaptar as realidades vividas e
retratadas pelo Edgar Allan Poe original no século XIX e a realidade
brasileira vivida pelo Edgar tupiniquim da época atual.
Para quem ainda não conhece a obra desse
grande autor, ai está uma boa oportunidade para começar. No entanto, o
meu alerta fica para aqueles que já estão familiarizados com os contos
de Poe. Tenho que admitir que apesar da série conseguir se adaptar a
realidade tupiniquim de modo satisfatório, ela deixa a desejar um pouco
no aprofundamento psicológico dos personagens como já mencionei. Eu
atribuo essa falha a adaptação feita para que o Edgar narre a história
ao invés de deixarem como no texto original, em que essa narração é
feita em primeira pessoa e acredito que ela possa ser solucionada
nos próximos episódios, pois a série parece bem promissora para os
padrões nacionais de suspense na TV.
Outra vantagem para quem já conhece os
contos de Poe é que eles provavelmente irão se divertir bastante ao se
deparar com as pequenas sutilezas deixadas pela produção da série como,
por exemplo, o diálogo entre Edgar e o pombo cinza no final do episódio,
ou o nome da agencia (DDT nunca mais) que remetem ao famoso poema “O
Corvo”, considerada uma das maiores obras primas de Poe como também um
dos poemas mais significativos para o romantismo anglófono.
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