domingo, 21 de novembro de 2010

Afinal, o que quer Luiz Fernando Carvalho?


por Fernando Collaço

Poderia haver melhor artista do que um homem apaixonado? Parafraseando uma das falas presentes no roteiro da nova microssérie da Rede Globo, Afinal, o que querem as mulheres?, que marca o retorno de Luiz Fernando Carvalho à programação televisiva, pergunto o que ainda nos reserva e quais os limites da experimentação desse diretor, um verdadeiro artista apaixonado por aquilo que faz.

Tendo como o objetivo declarado a reeducação do olhar do espectador através de sons, imagens e conteúdo diferenciado, quebrando com o realismo-naturalista produzido quase que em escala industrial na teledramaturgia atual, Luiz Fernando visa estimular o processo reflexivo sobre aquilo que nos é entregue diariamente através do fluxo imagético. Seu processo criativo ganha dessa forma notoriedade e proporciona discussões acaloradas, despertando paixão, e muitas vezes aversão na maioria daqueles cruzam com suas obras, uma vez que estas acabam sendo consideradas de difícil digestão, uma vez que o julgamento traz como parâmetro o ranço dramatúrgico acumulado ao longo dos anos.

Pautado sempre por um processo que envolve um laboratório completo, que vai desde palestras temáticas a ensaios minuciosos, o diretor procura sempre um tempo ideal de maturação para o que pretende dar vida. Dentre suas obras, encontramos telenovelas como O Rei do Gado, na qual apostou, principalmente nos primeiros episódios, o recurso dos tempos-mortos cadenciando um ritmo mais cinematográfico, auxiliado pelas gravações baseadas na utilização de apenas uma câmera, ao invés de três simultâneas, dando maior atenção às imagens produzidas.

Com Hoje é dia de Maria, traçou os primeiros contornos de uma estética artificial explícita, trabalhando um universo artificial por excelência que contava com a presença de seres inanimados na forma de marionetes, atuações próximas ao teatro, o recurso do stop-motion, dentre outros. Com A Pedra do Reino e Capitu deu pontapé inicial ao Projeto Quadrante, visando revisitar localidades brasileiras através de um diálogo com grandes obras da literatura nacional através da teledramaturgia. Nesse processo, reafirmou sua vontade e objetivo de buscar a reeducação visual e sonora do olhar do telespectador, auxiliado pela intensa troca com linguagens artísticas diversas, por vezes tão díspares ao meio.

Seu mais novo produto é fruto de outro processo de maturação. Depois de um longo período trabalhando baseado em obras literárias canônicas, o diretor volta sua atenção para a psicologia/psicanálise, em especial para uma questão, que acabará sendo a chave para um mergulho nos estudos de Freud: afinal, o que querem as mulheres?

Para a decepção daqueles que esperam resultados prontos e mastigados, a microssérie não propõe uma resposta para a questão, se é que a mesma sequer tem algum tipo de resposta, uma vez observada a abrangência da indagação. Ao tocar o universo da psicologia/psicanálise, o diretor, guiado novamente por seus instintos, acaba por pisar, em um terreno menos afeito ao artificialismo explícito, porém, mesmo assim, dotado de intensa carga experimental.

Tendo como fio condutor a história do casal formado por André Newmann (Michel Melamed), doutorando em Psicologia, que busca a resposta para a famosa questão posta por Freud, e Lívia Monteiro (Paola Oliveira), artista plástica, namorada de André há mais de cinco anos, a microssérie, que traz em alguns momentos a cidade do Rio de Janeiro como pano fundo, tem um início frenético com uma sucessão de quatro planos que nos mostram o dispositivo fílmico em ação: as câmeras em movimento para enquadrar André e, em seguida, a claquete que sublinha a seqüência ao afirmar, de uma vez por todas, que aquilo que iremos assistir é uma manipulação técnica que visa contar uma história.

Esse recurso metalinguístico, tão característico da pós-modernidade, que busca não a transparência, mas sim a opacidade do dispositivo, já encontrava espaço em outras produções do diretor, como na ocasião do julgamento de Chico Chicote (Rodrigo Santoro), na segunda jornada de Hoje é dia de Maria, no qual um movimento de câmera, semelhante ao realizado por Federico Fellini em seu filme E la nave va, enquadra e desvela assim toda a equipe de produção promovendo uma quebra no ilusionismo da ficção e impulsionando uma reflexão e distanciamento crítico perante aquilo que nos é mostrado.

Seguindo a trama, temos um narrador-personagem, que fala diretamente ao espectador, recurso introduzido pelo Cinema Moderno, que conta suas motivações, para logo em seguida apertar o play de seu gravador, suporte que leva consigo e que acumula todo o material sonoro de sua pesquisa e se torna uma das instâncias narradoras da trama, de onde partem as vozes e inserções sonoras em geral.

A manipulação da imagem é outro recurso de grande notoriedade na obra. A microssérie conta com uma ágil edição, que muitas vezes remete a uma linguagem próxima ao videoclipe, com uma grande quantidade de cortes sucessivos, que acaba dando ritmo frenético à narrativa, mas que também sabe o momento de desacelerar, como no primeiro grande flashback de Lívia, que narra o encontro do casal pela primeira vez, que traz imagens mais lentas, turvas como água, menos cortes e um abuso consciente do recurso das cores.

Talvez seja interessante pensar se o trabalho de Michel Gondry, referência declarada do diretor, que cita o filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças constantemente, não acabou contaminando também a edição, uma vez que o referido diretor citado possui um vasto percurso audiovisual frente à direção de videoclipes e comerciais de grande notoriedade.

Na esteira das inovações, temos uma imagem inundada por diversas cores, com primazia das primárias, e intervenções gráficas diversas, como o recurso de rotação da imagem na ocasião do primeiro beijo do casal ou mesmo o desfoque constante, que acaba por conversar tanto com referências da Arte Pop, como com uma filmografia de diretores como Wong Kar Wai, que é refletida no uso constante de planos detalhes e na presença acentuada de uma grande quantidade de objetos obstruindo a nossa visão, como quinas de mesas, batentes, folhas da tese de André, gotas de água, dentre outros, que criam a sensação de um ambiente menor, fechado e quase claustrofóbico. Essa “poluição visual” de informações e cores, que por vezes cansa o olhar, é de extrema importância para o diálogo que propõe imageticamente com o trabalho de Lívia, artista plástica que manipula constantemente as cores em seus quadros de forma muitas vezes agressiva.

Há espaço de destaque ainda para muitos outros elementos da microssérie, como a direção de arte primorosa da lanchonete onde André entrevista as garçonetes e a trilha musical que conta com sucessos antigos, como Procol Harum, ou mesmo a própria banda de Michel Melamed que é responsável pelo tema de abertura. Além disso, temos o recurso dos intertítulos, utilizados já em Capitu, através da máquina de escrever de André, as referências múltiplas ao cinema (2001: Uma Odisséia no Espaço); à tragédia grega (Édipo Rei) na ocasião do encontro de André e sua mãe, interpretada por Vera Fischer, ao relembrar o momento, quando criança, em que oferece os próprios olhos à mãe para que essa possa enxergar aquilo que ele vai ver através do mundo, numa alusão a jornada de Édipo, que acaba cego; ou mesmo ao próprio trabalho, como na cena na qual André pede para mãe um café duplo, triplo, ou mesmo com chumbinho, semelhante ao personagem de Machado de Assis, Bento Santiago, interpretado também por Melamed na microssérie Capitu, que em determinado hora cogita o envenenamento do filho, da esposa e de si mesmo através de uma dose de chumbinho na bebida.

O que cabe a nós, enquanto telespectadores é observar nesse processo autoral que o diretor traça ao longo dos anos, o esmero com que trata as imagens e os sons de suas obras, nos entregar ao processo e avaliar a experiência obtida e perceber como isso vai de encontro ao seu principal objetivo, tirar o espectador da passividade proporcionada pela teledramaturgia engessada de hoje em dia e despertar o distanciamento crítico que promove uma discussão a respeito daquilo que se assiste.

Luiz Fernando não busca se isolar dentro da televisão, pelo contrário, mesmo sendo considerado um autor de difícil compreensão e muitas vezes carregar a bandeira do experimental de forma solitária, ele tem consciência que sua missão é de extrema importância para a teledramaturgia brasileira e, com certeza, mesmo com toda resistência, sabe que está plantando sementes muito importantes para o futuro da televisão brasileira.

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