domingo, 7 de dezembro de 2008

Obra-prima de Machado de Assis volta modernizada na microssérie 'Capitu'


Embalada ao som de Jimi Hendrix; pelos acordes metálicos de "Iron man", de Ozzy Osbourne; e por uma canjinha de "Cheek to Cheek", adocicada pelo gogó de Fred Astaire, "Capitu", a nova microssérie de Luiz Fernando Carvalho, estréia nesta terça-feira na Globo, às 22h55m, dando à literatura de Machado de Assis (1839-1908) um ar de ópera-rock. A trama vem de "Dom Casmurro" (1899), um marco do romance nacional. Mas vai ter gente achando que é "Maria Antonieta", de Sofia Coppola. Só que a atração é bem mais lúdica do que o filme de Sofia, trazendo um tom da mais pura brasilidade. Nunca se viu século XIX mais pop, com flertes entre o jovem Bento Santiago (César Cardadeiro) e Capitu (Letícia Persiles, vocalista do grupo Manacá) na levada de "Elephant gun", da banda Beirut.

- "Capitu" é uma oferta de reconciliação entre Machado de Assis e os jovens - explica o cineasta e diretor de TV Luiz Fernando Carvalho.

Consagrado por sucessos como a novela "Renascer" e a série "Hoje é dia de Maria", Carvalho encara "Dom Casmurro" como "um romance interativo", que mistura crônica e ópera:

- A estrutura do livro é quase a de um conjunto de microcontos separados por entretítulos, como se fossem as cartelas de texto do cinema mudo. É uma literatura de colagens. Isso é algo que está na ordem do dia. Por isso, eu me preocupei em oferecer aos jovens, que estão acostumados a essa interatividade, o Machado que vem sendo mal administrado nas escolas, numa obrigatoriedade de ensino para adolescentes de 14 e 15 anos que não têm condições de absorver sua sutileza.

Na tela pequena, a leitura de Carvalho para "Dom Casmurro" se preocupa pouco com a hipótese de adultério de Capitu (vivida na idade adulta por Maria Fernanda Cândido). A série se concentra mais em dissecar o mundo de aparências em que ela desconcerta o coração e os dogmas de dândi do jovem Bento. Mais velho, o personagem é confiado ao poeta, ator e apresentador Michel Melamed.

- Mais do que um poeta, Melamed é um falador. Ou melhor, um fala-dor, com hífen. É alguém que fala da dor - ressalta Carvalho.

Escobar, o amigo de infância de Bentinho que será o combustível de suas desconfianças, é encarnado por Pierre Baitelli. A relação dos dois é capaz de atiçar a malícia do público.

- Há uma homo-afetividade explícita entre eles que é natural do mundo de dândis do século XIX. Bentinho é filho da elite branca que devia sua existência à escravatura. Aquela elite cínica, falsa e inconfiável, que nasceu no Brasil querendo ser francesa, gerava frutos como Bentinho. Frutos indefinidos - frisa o diretor.

Dividida em cinco capítulos, "Capitu" é o segundo programa do projeto "Quadrante", voltado para diálogos com obras literárias de diferentes regiões do Brasil. O primeiro foi o polêmico "A pedra do reino", ancorado na prosa de Ariano Suassuna, que foi ao ar em 2007, com baixos índices de audiência. Na ocasião, "A pedra..." rachou o gosto dos críticos com sua aridez narrativa. Hoje, às vésperas da estréia de seu novo trabalho, Carvalho refuta a idéia de que a descolada roupagem da nova série seja um esforço seu para atrair telespectadores.

- Talvez eu tenha tido uma leitura hermética em "A pedra do reino", mas ela foi necessária naqueles dias. Como diz Ariano, aquela microssérie é para ser entendida daqui a dez anos. "Capitu" segue a estrutura que tem porque cada livro do projeto "Quadrante" exige um exercício de linguagem diferente. A cada um, eu sou forçado a rever meu olhar - afirma o diretor, que rodou o novo trabalho no prédio do Automóvel Clube do Brasil, no Passeio. - "Dom Casmurro", que foi escrito a partir das ruínas de um tempo, com ceticismo em relação ao futuro que viria, revela um Machado dadaísta, que trabalha a partir de restos. Por isso, a narrativa desta microssérie dialoga com um conjunto de restos de imagens de arquivo. Daí ter filmado no velho prédio Automóvel Clube. Filmei lá porque ali também havia ruínas de um tempo.

Filmes como "Drácula de Bram Stoker" (1992), de Coppola, e "As loucas aventuras de Rabbi Jaccob" (1973), de Gérard Oury, são evocados a cada plano de "Capitu". Mas Carvalho, aclamado como cineasta com "Lavoura arcaica" (2001), não foi à telona buscar parâmetros para narrar "Dom Casmurro". Ele se aproximou mais da obra de artistas plásticos afeitos a colagens, como o francês Jacques Villeglé e o georgiano Andro Wekua, e do teatro.

- "Capitu" dialoga com "O doente imaginário", de Molière, uma vez que Bentinho se inflamou em suas imaginações, elegendo aparências como verdades absolutas. Esse embate entre aparência e verdade é uma crítica à própria televisão, que nos leva a crer que estamos na mais fina das repúblicas neste Brasil de coronéis e de milícias. Isso já estava em Machado, o que mostra o quanto esse escritor era moderno.

É nessa visão de modernidade que "Capitu" melhor pode surpreender os professores do ensino médio, que lutam para fazer de "Dom Casmurro" uma leitura prazerosa.

- Uma das formas de vencer a indiferença dos alunos ao livro é apelar para a questão do suposto adultério de Capitu. Mas essa polêmica é o que menos importa diante do ensaio existencial de Machado sobre como a dúvida impede um homem de viver - diz o professor de Literatura Diogo de Oliveira Mendes, que assistiu aos primeiros capítulos da microssérie a convite do GLOBO, e exclamou um "Dar aula agora será mais fácil!" ao fim da exibição.

Mestre em Literatura pela UFRJ e professor da rede Ponto de Ensino, Mendes diz que "Capitu" faz mídia e cultura comungarem sem hermetismos.

- Ao ultrapassar a questão do adultério, Carvalho explora de forma poética como Bentinho é a alegoria de como uma idéia fixa pode auto-anular alguém. Esta é a atemporalidade do livro, tão importante de ser compartilhada em aula, para além de discursos oficialescos.

Para o diretor, o maior desafio de "Capitu" era o de tirar Machado dessa oficialidade:

- Falar de "Dom Casmurro" é lidar com a juventude. Para isso, é preciso desvelar Machado, tirando a redoma de presidente da Academia Brasileira de Letras em volta dele e deixando o Bruxo solto.

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