domingo, 7 de dezembro de 2008

Os Satyros gravam minissérie em tom de realismo fantástico

Não faz mais do que 15ºC em Monte Alegre do Sul, no interior de São Paulo, na noite em que as câmeras da minissérie "Além do Horizonte" enquadram Pandora, 19.

A cena pede que ela cruze a praça Bom Jesus com leveza e desenvoltura. Na primeira tomada, parece um tanto desconcentrada. Na segunda, desgostosa, abandona o set. A galope, para desespero da equipe.

Pandora é a égua de Esperantino, o protagonista desta co-produção entre TV Cultura e Sesc --uma de seis atualmente em elaboração, na terceira fase do projeto "Direções". Filho de um padre com a dona do bordel da fictícia Pérola do Norte, ele volta do exílio para vingar a morte do pai, linchado ao ser pego com a prostituta. Seu "troco" será despertar a libido recalcada dos conterrâneos.

Até a semana do Natal, Monte Alegre do Sul, com seus 6.000 habitantes distantes 145 km da capital e orgulhosos de seus morangos e cachaças, fará as vezes de Pérola do Norte.

O roteiro é do ator Ivam Cabral, da trupe paulistana Os Satyros, que diz ter se inspirado no realismo fantástico de García Márquez e Dias Gomes; os nomes de personagens e a aura de mistério também aludem ao Aguinaldo Silva kitsch de "Fera Ferida" e "A Indomada".

Na direção, o encenador d'Os Satyros Rodolfo García Vázquez diz que a idéia é "trazer nosso jeito de fazer teatro para o modus operandis da TV".

O que às vezes significa "apanhar" dos equipamentos ("no começo, não conseguia olhar as cenas pelo monitor; ficava observando os atores diretamente") e levar puxões de orelha do diretor do núcleo de teledramaturgia da Cultura, Pedro Vieira, que segue as gravações:

"A gente vai ter de abrir mão do áudio! Silêncio absoluto para gravar pata de cavalo não dá!", diz ele, em reação ao preciosismo de Vázquez. Mais adiante, chama atenção para a segurança da atriz Lavínia Pannunzio, que monta Pandora: "Não pode vir rápido aí [em ladeira com paralelepípedo], não, Rodolfo! Rápido aí é f*! Se quiser, acelera na edição".

O "jeito de fazer teatro" dos Satyros pressupõe uma abordagem aberta da sexualidade. Nudez e sugestão de relação sexual são comuns em suas peças:

"Não abrimos mão da nossa radicalidade. Só a estamos levando a um público mais amplo", afirma Vázquez. "O cara que vai à praça Roosevelt [onde está a sede do grupo, no centro de São Paulo] ver um espetáculo radical sabe que está lá para isso.

Na TV, pode haver um senhor ou uma criança vendo. A minissérie aborda temas caros ao nosso projeto estético, como o desejo e a hipocrisia, numa linguagem que não vai ofender o velhinho que mora na fronteira com Mato Grosso do Sul."

Para Cabral, a negociação das concessões artísticas foi mais penosa. "Esse jogo com a Fundação Padre Anchieta [mantenedora da TV Cultura] foi difícil. Não pode ter seio de fora. Cortamos bastante."

O coordenador de conteúdo e qualidade da Fundação, Gabriel Priolli, afirma que "a posição é de obediência à classificação indicativa": "É possível mostrar tudo, desde que em adequação à faixa de exibição. Se contextualizada, a nudez pode existir.

Não temos medo de ousar, mas não somos irresponsáveis: sabemos que estamos pilotando um veículo de massa". O programa deve ir ao ar às 22h, horário em que o conteúdo não é recomendado a menores de 16 anos.

O que todos concordam é que "a teledramaturgia precisa ser renovada, dinamizada", nas palavras de Priolli. "Será que nunca superaremos a novela 'Pantanal', duas mulheres brigando por um homem, melodrama enlatado?", indaga Vázquez.

A busca de novas veredas para a teledramaturgia não tira o sono de Monte Alegre do Sul. Na praça quase deserta, o grupo de canto litúrgico sai da aula na igreja e passa batido pela parafernália da produção.

Lá no canto, escondidinhas, três senhoras observam de soslaio: a primeira-dama da cidade, sua irmã gêmea e a vereadora reeleita. É Dias Gomes que veio espiar os Satyros.

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