Não faz mais do que 15ºC em Monte Alegre do Sul, no interior de São Paulo, na noite em que as câmeras da minissérie "Além do Horizonte" enquadram Pandora, 19.
A cena pede que ela cruze a praça Bom Jesus com leveza e desenvoltura. Na primeira tomada, parece um tanto desconcentrada. Na segunda, desgostosa, abandona o set. A galope, para desespero da equipe.
Pandora é a égua de Esperantino, o protagonista desta co-produção entre TV Cultura e Sesc --uma de seis atualmente em elaboração, na terceira fase do projeto "Direções". Filho de um padre com a dona do bordel da fictícia Pérola do Norte, ele volta do exílio para vingar a morte do pai, linchado ao ser pego com a prostituta. Seu "troco" será despertar a libido recalcada dos conterrâneos.
Até a semana do Natal, Monte Alegre do Sul, com seus 6.000 habitantes distantes 145 km da capital e orgulhosos de seus morangos e cachaças, fará as vezes de Pérola do Norte.
O roteiro é do ator Ivam Cabral, da trupe paulistana Os Satyros, que diz ter se inspirado no realismo fantástico de García Márquez e Dias Gomes; os nomes de personagens e a aura de mistério também aludem ao Aguinaldo Silva kitsch de "Fera Ferida" e "A Indomada".
Na direção, o encenador d'Os Satyros Rodolfo García Vázquez diz que a idéia é "trazer nosso jeito de fazer teatro para o modus operandis da TV".
O que às vezes significa "apanhar" dos equipamentos ("no começo, não conseguia olhar as cenas pelo monitor; ficava observando os atores diretamente") e levar puxões de orelha do diretor do núcleo de teledramaturgia da Cultura, Pedro Vieira, que segue as gravações:
"A gente vai ter de abrir mão do áudio! Silêncio absoluto para gravar pata de cavalo não dá!", diz ele, em reação ao preciosismo de Vázquez. Mais adiante, chama atenção para a segurança da atriz Lavínia Pannunzio, que monta Pandora: "Não pode vir rápido aí [em ladeira com paralelepípedo], não, Rodolfo! Rápido aí é f*! Se quiser, acelera na edição".
O "jeito de fazer teatro" dos Satyros pressupõe uma abordagem aberta da sexualidade. Nudez e sugestão de relação sexual são comuns em suas peças:
"Não abrimos mão da nossa radicalidade. Só a estamos levando a um público mais amplo", afirma Vázquez. "O cara que vai à praça Roosevelt [onde está a sede do grupo, no centro de São Paulo] ver um espetáculo radical sabe que está lá para isso.
Na TV, pode haver um senhor ou uma criança vendo. A minissérie aborda temas caros ao nosso projeto estético, como o desejo e a hipocrisia, numa linguagem que não vai ofender o velhinho que mora na fronteira com Mato Grosso do Sul."
Para Cabral, a negociação das concessões artísticas foi mais penosa. "Esse jogo com a Fundação Padre Anchieta [mantenedora da TV Cultura] foi difícil. Não pode ter seio de fora. Cortamos bastante."
O coordenador de conteúdo e qualidade da Fundação, Gabriel Priolli, afirma que "a posição é de obediência à classificação indicativa": "É possível mostrar tudo, desde que em adequação à faixa de exibição. Se contextualizada, a nudez pode existir.
Não temos medo de ousar, mas não somos irresponsáveis: sabemos que estamos pilotando um veículo de massa". O programa deve ir ao ar às 22h, horário em que o conteúdo não é recomendado a menores de 16 anos.
O que todos concordam é que "a teledramaturgia precisa ser renovada, dinamizada", nas palavras de Priolli. "Será que nunca superaremos a novela 'Pantanal', duas mulheres brigando por um homem, melodrama enlatado?", indaga Vázquez.
A busca de novas veredas para a teledramaturgia não tira o sono de Monte Alegre do Sul. Na praça quase deserta, o grupo de canto litúrgico sai da aula na igreja e passa batido pela parafernália da produção.
Lá no canto, escondidinhas, três senhoras observam de soslaio: a primeira-dama da cidade, sua irmã gêmea e a vereadora reeleita. É Dias Gomes que veio espiar os Satyros.
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