Exibida na Rede Globo entre 1970 e 1971, Irmãos Coragem foi um marco na teledramaturgia nacional. Para quem quiser matar as saudades ou conhecer a trama, a Globo Marcas lançou uma caixa com oito DVDs que mostram a história do início ao fim - vendida com preço sugerido de R$119. Ao todo são mais de 27 horas de material. E tudo foi avaliado pelo diretor geral da trama, Daniel Filho.
Irmãos Coragem, novela que abre a década de 1970, além de levar a Rede Globo à liderança nacional, marca o início da modernização e industrialização da telenovela brasileira que viria a ser solidificada com Selva de Pedra, também de Janete Clair.
A trama, um épico da nossa teledramaturgia, não por um acaso, foi ambientada no interior de um estado distante dos grandes centros urbanos: Goiás. Ainda que pese a região diamantífera ser totalmente adequada para ambientar a novela, Janete considerava que desta maneira seria mais fácil a ponte para a fantasia do público; afinal, ela sempre deixava claro que seu objetivo maior era contar histórias a partir de sua imaginação; ainda que utilizando elementos da realidade (aspectos estes que foram ampliando-se com a evolução de sua magnífica obra televisiva, escola para qualquer profissional de comunicação).
Na dúvida sobre a aceitação da trama oriunda dos faroestes norte-americanos transpostos devidamente para o cenário brasileiro, Janete criou um núcleo de personagens no Rio de Janeiro. Na Cidade Maravilhosa vivia Duda Coragem (jogador do Flamengo). Duda era casado com Ritinha (Regina Duarte) e lembro-me perfeitamente o quanto angustiante era a relação dos dois. Ele sempre envolto por cartolas do futebol (Ernani – Paulo Araújo), mulheres (Paula – Myrian Pérsia) que queriam sua fama, seu status social. Ritinha queria apenas ser feliz ao lado do homem que havia escolhido para viver um grande amor.
Para surpresa de Janete, o público foi identificando-se cada vez mais com o western de Coroado e o núcleo do Rio termina na pequena cidade perdida no interior do Brasil. Em Coroado mora o pai de Ritinha, Dr. Maciel (Ênio Santos), médico embriagado. As coisas complicam-se quando Duda leva um tiro na perna.
A trama do jogador de futebol ainda sofreria mais um golpe, mas muito bem resolvido por Janete. Como as gravações no clube do Flamengo, na Gávea, ficaram complicadas, Duda teve seu passe comprado pelo Corinthians. Com isso, autora e novela agradavam em cheio as duas maiores torcidas futebolísticas do Brasil.
O grande heroi (épico) da novela foi João Coragem (Tarcísio Meira), um justiceiro. Além de encontrar o diamante, vivia um grande conflito sentimental. Apaixonou-se por Lara (Glória Menezes), filha do temível coronel Pedro Barros (Gilberto Martinho). Pedro Barros era um homem extremamente autoritário, manipulador e explorador. Enquanto vivia num casarão, os mineradores moravam em verdadeiros casebres; passavam fome, tinham sede durante o trabalho e todo o tesouro que encontravam seguia diretamente para suas mãos. Nesta situação encontrava-se Brás Canoeiro (Milton Gonçalves, que também dirigiu a novela), casado com Cema (Suzana Faíni).
Pedro Barros (o grande papel da vida do saudoso Gilberto Martinho), era senhor absoluto de Coroado. Comprava a tudo e a todos que curvavam-se diante dele; inclusive o delegado Falcão (Carlos Eduardo Dolabella).
A grande luta de João era manter-se proprietário de seu diamante.
Pedro Barros tinha como grande capanga Juca Cipó (Emiliano Queiroz), um desequilibrado mental – que teve as maldades amenizadas porque sua interpretação conquistou as crianças.
Na verdade, Juca era filho de Pedro Barros com Domingas (Ana Ariel).
A esposa de Pedro Barros, Estela (Glauce Rocha) tinha um amante: Lourenço D’Ávila (Hemílcio Fróes), o braço-direito de Pedro Barros. Era uma mulher da moda, da cidade grande, liberada e, portanto, crítica do estilo de vida em Coroado.
Pedro Barros significava toda a repressão que ganhava corpo em nosso País.
A personagem mais equilibrada da trama era Dalva (interpretada pela saudosa e inesquecível Mirian Pires), tia de Lara; além do padre Bento (Macedo Neto) – mas este e sua igreja também deviam favores a Pedro Barros.
Lara, muito reprimida por seu pai, com a ausência da mãe, e vítima de uma epilepsia traumática, desenvolveu tripla personalidade: Lara era totalmente frágil e submissa; Diana, uma libertina e, por fim, encontramos Márcia, um equilíbrio entre as três.
Também há a boa lembrança de Sinhana (Zilka Salaberry) a Mãe Coragem da trama.
Aliás, Janete inspirou-se em Mãe Coragem, de Bertolt Brecht, para criar a personagem. E daí, Daniel Filho, o diretor geral, criou o nome da novela: Irmãos Coragem.
Outras fontes de inspiração para Janete foram: os romances O Garimpeiro, de Herberto Salles, A Pérola, de John Steinbeck e o filme As Três Máscaras de Eva.
A união faroeste, futebol e política trouxe de maneira definitiva o público masculino e infanto-juvenil para frente da telenovela.
À época eu contava com oito anos de idade. Fui com minha avó na loja Mappin comprar um Forte-Apache e o lojista comentou que “a novela Irmãos Coragem havia aumentado a venda do brinquedo!”
Na feira, na barraca de peixe, sempre escutava os vendedores comentando a novela; em particular a luta de João para reaver o diamante roubado por Pedro Barros.
Na feira, na barraca de peixe, sempre escutava os vendedores comentando a novela; em particular a luta de João para reaver o diamante roubado por Pedro Barros.
Particularmente emocionante foi a trajetória de Jerônimo Coragem (Cláudio Cavalcanti) e sua grande paixão, a índia Potira (Lúcia Alves). Jerônimo, ao enveredar para a política estava, de certo modo, traindo a confiança de seu povo, de sua gente. Chega a casar-se com Lídia (Sônia Braga, em sua estreia em novelas), filha do Dr. Siqueira (Felipe Wagner), amigo pessoal de Pedro Barros. Por fim, retorna às origens, com a índia Potira e, em posse do diamante, ambos são mortos (liderados pelo ambicioso Rodrigo César – José Augusto Branco) em nome do poder e da ambição financeira – aspectos estes que perpassam toda a obra de Janete Clair.
Enlouquecido em seu poder, Pedro Barros incendeia a cidade. O monólogo final de João Coragem (digno de momento épico das grandes tragédias gregas), conclamando o povo para reconstruir Coroado, sintetiza, de certo modo, a integração e a construção de uma identidade nacional por meio da telenovela.
Neste quesito, aproximo a obra de Janete Clair, matriarca da telenovela brasileira, à de José de Alencar, patriarca de nossa literatura. Ambos, por meio de suas histórias, tinham como desejo supremo mostrar o Brasil na ficção integrando-o no imaginário coletivo.
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